Sobre o fausto de quem sabe mas não lê




Hoje é um daqueles dias em que acordo assoberbado de cultura. E, no entanto, esta frase contém duas gloriosas mentiras. Primeiro, não acordo. Acabei de trabalhar durante a noite, pelo que, além de não acordar ainda me falta dormir. Além disso, estou a sentir-me atulhado na falta de cultura e não na sua, tão desejada, presença.
Não raras vezes, como hoje, tenho o dever de aturar conversas avulsas com rótulo de heresia. Dizem essas vozes não gostar de ler e, por tal motivo, não terem hábitos de leitura.
Confusa declaração esta de não gostar de ler. Acaso alguém é capaz de dizer que não gosta de respirar? E, ainda assim, é uma necessidade perfeitamente comparável com a leitura.
De que serve, pois, terem aprendido a fazê-lo? Para contribuírem por ordem divina para  a não menos endeusada estatística?
Que me atestem que determinado género de publicações, de textos ou  de palavras não são da sua preferência é algo que não me conduz a este estado de revolta. No entanto, o fundamentalismo, como em tudo, enjoa.
Talvez seja por isso que me agarrei ainda mais veementemente a ‘O Processo’, de Kafka, que tenho vindo a ler desde a semana transacta. Refugiei-me ainda nos ‘Sonetos’, de Florbela Espanca, e comprei dois jornais.
Talvez seja, também, pela morte de um poeta e cronista da melhor estirpe, Manuel António Pina, que sinto este vazio. Morreu sem ter convencido aqueles que acima refiro de que deviam ler aquilo que escrevia. E isso, apesar da indiferença que um escritor pode fazer notar perante esta larga faixa de estreita largueza mental, dói.
Agora, ao invés de dormir, tento colmatar este oco sentir, alternando páginas.
E escrevendo para que aqueles que querem leiam e na esperança secreta de que alguma luz acenda por cima da estupidez das mentes daqueles que nada desejam fazer em prol de algo que lhes falta.


Assim dita, então, a minha alfabetizada raiva:


A cada palavra que leio
Ou a cada palavra que escrevo
Num imenso poço me enleio
Num imenso mundo me inscrevo 

Se na fome da leitura
Sinto a prisão dos pouco anos
Duma vida que não dura
O tempo de ler os decanos
Faço do critério a cura
E rejeito a literatura
Vinda de cérebros marranos 

Deixo à mercê de quem queira
A miserável existência
De não ter sequer maneira
Ou fórmula de algibeira
Para mostrar inteligência 

Dou a sonhada permissão
Para citarem o egocentrismo
Que nasce da união
Entre a minha elevação
Com vosso perigoso abismo 

E se dúvida sobrar
Ou ainda faltar lucidez
Seja para interpretar
Ou para decorar de vez
Acabando de comunicar
Em cuidado português
Resta-me renunciar
Sem sequer suplicar
Deixando-vos supliciar
Nessa faustosa estupidez

Foto: barry-williams.com

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