Lágrimas selvagens






Há, entre amigos, laços que não se vêem durante o quotidiano das nossas vidas, preenchidas pelos afazeres que delas fazem parte, mas que acabam por determinar a pessoa que somos. São esses laços que, sendo chamados à razão da sua existência nos momentos determinantes, respondem com um rotundo sim e estão presentes na sua forma mais vincada.
Ontem, compareci num local de perda. Uma perda enorme, já anunciada mas sempre imprevista, para um amigo. Nesse momento, após uma longa viagem para proporcionar o apoio devido, obrigatória na minha consciência e que, por isso, poderia até ter de me obrigar a percorrer o dobro da distância, subiu-me a empatia aos olhos e escorreu-me pela cara...
No final, aguentando-se como podia com a despedida que lhe marcava a cara de cansaço, ele cumprimentou os outros amigos, sempre sem me ver. Eu já domesticara as minha lágrimas.
Porém, quando reparou em mim, presença que ele ainda desconhecia, entregou-se à comoção. A surpresa, aliada à dor que nele habitava, fê-lo soltar-se e perder a contenção. E eu perdi o controlo e vi as minhas lágrimas escorrem selvaticamente. Conversámos abraçados, atabalhoadamente, sobre como poderia contar comigo e sobre como chorar fazia bem. Sempre fui apologista inveterado do choro. E ele, normalmente duro em relação às lágrimas, deixou-se ir no leito triste e empático que criámos ali.
Há perdas irrecuperáveis e amigos admiráveis. Ontem, num dia de constatações do que de mais óbvio há na vida, ainda houve tempo para sorrisos e ternuras e trocas de aventuras, muito embora sempre à sombra daquela dor basal.
"A vida é assim", "Faz parte..." ou outras palavras de circunstância são sempre proferidas e podem ser camufladoras. As lágrimas que se decidem a ser selvagens depois de as domesticarmos, que se decidem a irromper pela face abaixo inexpugnavelmente, não têm preço e são feitas só de virtudes. E lavam até o que alma desconhecia conter...




Foto: pcworld.com (Spider's Web by Walt Durling, Strasburg)



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