A Ode Triunfal "sublinhada" a azul



Passamos grande parte do nosso tempo expostos a desgraças e amostragens gratuitas de violência. Os telejornais são o catálogo perfeito das atrocidades a que o mundo nos sujeita, mesmo que criminalidade seja uma estatística em diminuição ao longo dos séculos. Em horário nobre são transmitidos programas que exibem casais feitos à pressa, relações sexuais separadas do nosso olhar por um simples lençol ou comentadores desportivos que insultam os praticantes da modalidade.

Nada disto é um problema, mas a Ode Triunfal de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) sim. Hesitei em comentar uma estupidez desta dimensão, mas hoje, ao passear numa livraria suíça, comovi-me ao ver estampada na parede a seguinte frase: ““La littérature est la preuve que la vie ne suffit pas” - Fernando Pessoa”. 

Para alguém na Porto Editora não é assim. A literatura tem de ser censurada, porque Álvaro de Campos se deu à desfaçatez de escrever “ linguagem explícita e que se relaciona com a prática de pedofilia”. 

Claramente isto é gravíssimo, principalmente porque sabemos que nenhum dos miúdos ouviu os pais fazer piadas com o Carlos Cruz e o Bibi. É ainda mais graves, porque todos os miúdos em idade escolar têm pais que não chamam “filho da puta” ao árbitro quando este prejudica o seu clube. Além disso, as mães também não vêem os reality shows que mostram as donzelas a trocar de cama e de pénis à velocidade da irreflexão. 
Creio que têm razão. O problema da sociedade, e em particular dos alunos do 12º ano, é a literatura. Ler “Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas" e "E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - / Masturbam homens de aspeto decente nos vãos de escada” traumatiza qualquer adolescente. 

Que se refugiem na internet, essa sim é a solução. Até porque todos sabemos que encontrar pornografia é extremamente complicado. Deixem-nos vaguear pelo Instagram, porque lá não se encontra uma única miúda menor a oferecer fotografias sensuais em troca de seguidores, nem sequer pândegos e putas a propagandear uma vida de luxo que não têm, seja com ou sem automóvel.

O importante é proteger os meninos dos perigos das letras e das palavras doutas, deixar ao critério dos professores ler os versos perigosos e defraudar a cultura portuguesa. Como diz a Porto Editora no seu comunicado em que nega a censura, cabe aos docentes decidir ”se têm ou não condições para abordarem os referidos versos com o tempo e o cuidado necessários, uma vez que podem, obviamente, constituir fator de desestabilização ou de desvio da atenção dos alunos.”

Devem estar certos, porque a última coisa de que me lembro de quando andava na escola é de ver os meus amigos a abandonar as bolas de futebol e os telemóveis para poderem ser os primeiros a usufruir dos prazeres da literatura. Voavam papéis na sala e nunca encontrei um único com caricaturas do professor ou versos obscenos para as colegas; era tudo literatura. Em vez de droga, todos sabemos, não há uma escola que não tente combater o flagelo do tráfico da poesia erudita.

Melhor seria queimar todos os livros que falam de ditadura e vê-los eleger déspotas quando adultos. Ou então rasgar todos os textos que falem de violência, acabar com os filmes do mesmo teor e dizer aos meninos que a guerra não existe, que as criancinhas em África têm comida à discrição e deixá-los todos os sábados na catequese para eles saberem que na vida o que é preciso é ser bom. 


Esta última ideia pode ser especialmente produtiva. No seio sagrado da Igreja, pode ser que eles aprendam o que é pedofilia sem terem sequer de ler a Ode Triunfal. 

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