Charlie Hebdo

Vou-me pronunciar sobre o Charlie Hebdo.
Vivo de perto uma realidade religiosa, sendo que na minha família há crentes de quatro religiões diferentes e um quinto grupo de desertores, no qual me incluo.
Sei, de fonte segura, por ter lido a Bíblia de ponta a ponta várias vezes, e partes de outros livros sagrados como o Corão, que a deturpação das palavras ditas sagradas é resultado de mais crimes do que a fome. Mais de metade do que as religiões veiculam não pode ser provado e depende unicamente da fé, algo que não é reprovável nem condenável mas que tem um lugar próprio: o interior de cada um.
Acontece que, quando se acredita muito, deseja-se que outros também acreditem. E isso leva a uma tentativa de influência para a conversão que gera discórdia, como em qualquer outra opinião, mas com muito mais força.
Agora vamos relativizar as coisas. A fé é importante, mas apenas para aqueles que a têm. Assim como o futebol, a praia, o jogo da sameirinha ou da malha. E não me digam, por favor, que estou a relativizar de mais porque conheço muita gente que dá mais valor ao futebol ou à malha do que à fé (que não tem).
A liberdade de expressão que tanto se discute hoje baseia-se no seguinte: todos temos direito à nossa opinião, seja ela qual for, e todos temos de arcar com as consequências legais, repito, legais, que elas possam acarretar. Vejam outro exemplo. Chamaram "paneleiro" ao Manuel Luís Goucha na televisão e ele processou-os. Ambos estão no seu direito: uns de usar de liberdade de expressão até para ofender e outros para se defenderem legalmente, repito legalmente.
Sabem quantas vezes já insultaram a minha família pelas crenças? Sabem quantas dessas vezes eu os defendi? E quantas dessas fui eu que os insultei? E, no fim, por sermos seres humanos, estamos quase todos vivos e os que morreram foi de mortes alheias ao crime.
Por isso, o que aconteceu em França é um atentado à liberdade de expressão, sim. Aqueles três indivíduos tinham o direito de desenhar os caricaturistas com cara de demónio, de os insultar, de lhes ler os versículos que entendessem aos ouvidos ou até de os processar. Ultrapassaram o limite da integridade física, levaram vidas por uma estupidez que nada tem que ver com fé.
Saramago adjectivou Deus de filho da puta no livro Caim e a Igreja insurgiu-se, dentro dos seus direitos, civilizadamente. Não o matou. Alguns insultaram-no de volta, alguns tiveram vontade de lhe bater e de o fazer desaparecer da face da terra, mas não o fizeram. Disseram, apenas. E dizer ou escrever é exercer a liberdade de expressão. Desenhar também.
Todos temos o direito de contar anedotas sobre Moisés (já fui censurado por isto), desenhar Cristo a beber Coca-Cola na cruz, escrever sobre o Buda surfista, satirizar os bigodes esquisitos do Confúcio ou dizer que Ganesha é um Deus trombudo (e é). Os que tiverem conhecimento têm o direito de devolver argumentos, insultos ou processos judiciais, nunca agressões físicas ou balas.
Liberdade de expressão, não de acção, de repressão ou de limitação. Eles exprimiram-se com desenhos; os outros não se exprimiram, mas espremeram-lhes a vida por isso.
Eles desenhavam papéis que podiam ser ignorados pelos crentes, como eu já ignorei muitos ultrajes na minha vida.
Já as famílias, a França e o Mundo não poderão ignorar jamais o que lhes fizeram. Por isso, o Charlie Hebdo está nas bancas, já na próxima quarta-feira.





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