Na música como na religião só acredita quem quer






Vivemos na era da técnica. Vivemos na era da especialização máxima do desempenho e dos conhecimentos. O que nos traz até um momento único da história em que recorremos a um médico e ele descarta as suas responsabilidades para outro colega de outra área. Especializado que está num ramo, acabou por desligar-se dos restantes, não se achando suficientemente capaz para desempenhar a sua profissão nesses terrenos.
Chegamos também ao momento em que as máquinas substituem o Homem em imensas actividades. Até no âmbito artístico, fundamentalmente na música, existem meios para suplantar lacunas técnicas e deficiências de desempenho.
Aqui reside o primeiro paradoxo que vos quero apresentar, pois se por um lado temos que devemos especializar-nos através da formação, por outro temos que através de um subterfúgio tecnológico podemos chegar ao mesmo sítio sem sequer estudarmos uma página.
Assim, como na religião, o dogma da formação absoluta esconde o talento e a tecnologia defende os profundamente inaptos. Em que ficamos? Por mim, em nenhuma das duas.
Há um outro caminho que é o mais renascentista, como outrora, e que implica a integração de vários conhecimentos, sem descurar vários âmbitos da experiência humana e mesclando todos numa congregação cultural. Em linguagem corrente, ser um ser humano mais pleno.
Na religião, os ataques feitos à doutrina são rechaçados com a desculpa de que a falta de fé do descrente não permite o crente argumentar. Na música, também existe o mito de que um recinto de espectáculos ou um bar cheios pela presença de uma banda são sinónimo de qualidade. Num caso como noutro são afirmações fruto de pura crendice, porque é perfeitamente possível falar de religião racionalmente bem como ver uma casa cheia com uma banda de má qualidade. É, contudo, a defesa mais fácil dos crentes de ambos os lados.
Numa época como a nossa, o consumo de produtos culturais está mais presente onde é facilmente proprocionado aos clientes, porque a maioria destes não tem vontade, tempo ou sabedoria para procurar. Assim, o mais fácil e mais básico por vezes acaba por valer mais.
E se introduzirmos outro elemento nesta equação? Se falarmos daqueles que, sem competências, pretendem fazer acreditar o consumidor de que são as pessoas indicadas para desempenhar determinada função. Como na religião, acredita quem quer e questões de fé não são discutíveis, bem como opiniões diferentes e legítimas. Mas no caso de haver erros técnicos crassos ou paragens abruptas enquanto se toca um instrumento isso começa a ser algo que se assemelha a areia contra os olhos de quem paga.
Se este tipo de músicos for responsável por uma casa cheia de clientes isso agradará substancialmente ao proprietário e, pela lei de mercado, a aposta foi ganha. No entanto, a presença desse número de pessoas não assegura a qualidade do músico. Assim, critérios comerciais não são critérios qualitativos, porque o tipo de música, a comunicação com o público e a postura em palco, por exemplo, influenciam a resposta do cliente.
Em tempos, defendi alguém que se rebelou contra os músicos que, vindos de outro país, se afirmam em Portugal sem terem qualidade suficiente. Hoje, como nessa altura, defendo que quem quer aprender não o pode fazer em palco, a menos que o faça de uma forma não profissional, em termos experimentais e nunca sendo cabeça de cartaz de uma noite ou espectáculo.
E quanto à formação? É estritamente necessária a formação musical para tocar um instrumento? Não. Neste caso, a palavra-chave é "estritamente", porque embora seja possível há um limite de aprendizagem que não se ultrapassa autonomamente. Para chegar a níveis de excelência, a formação é necessária.
No caso de indivíduos de raro talento é possível atingir um nível de desempenho superior, mas mesmo esses veriam o seu potencial ser exponenciado pela formação.
Em comparações de profissionais que desempenham a mesma função em igualdade de circunstancias a formação faz diferença. No caso da música, a formação poderá permitir que um músico que toca rock todos os dias consiga ter um desempenho de qualidade no jazz. Não adquirindo os conhecimentos através da experiência, poderá fazê-lo através do estudo. Como na religião, o dogma de que só um estilo é legítimo irá limitar os conhecimentos. E aí voltamos ao mesmo...
Assim, esta é a posição que tenho em relação aos estereótipos religiosos que aqui equiparo à posição que tomo sobre os músicos que tocam profissionalmente de uma forma que desrespeita o consumidor. Há os que usam ficheiros MIDI para os substituírem na totalidade e não para seu auxílio, os que utilizam transposições electrónicas sem contenção... Quem sabe existirão alguns para quem uma pauta é feita de hieróglifos alienígenas.
Em suma, nestes casos musicais acredita quem quer, exactamente como nas questões religiosas. No entanto, nos primeiros basta estar atento e os erros atropelar-se-ão nos nossos ouvidos. Perante isto, alguns irritam-se, outros desculpam e outros não notam. Enquanto isso, dezenas de incapazes tomam o lugar de legítimos profissionais, porque os gostos mais comuns perderam poder crítico.
Lembra-me o dito: quem nasceu para lagartixa, nunca chega a jacaré...


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