O funeral da literatura

Imaginemos que existiu um país onde a literatura tinha história. Nesse país, os trovadores começaram por estar ao serviço das cortes. Declamavam as suas imensas palavras que, com vista ao divertimento dos presentes, acabavam por presenteá-los com surpresas bem-vindas, sinais de que a arte e o entretenimento podiam, saudavelmente, brincar lado a lado.

Esse país foi crescendo e, mais tarde, poetas de envergadura enorme puderam ler perante reis, reis com letra minúscula dada o tamanho da poesia que essas mãos escreveram. Num mundo em que a memória era ainda a original, que a luta travada pela marca que se desejava indelével era atroz, houve quem nadasse com um só braço, salvando uma nação inteira.

Mais tarde, com a força das mesmas palavras que o povo continha em forma de sangue explosivo, houve quem brincasse às obscenidades, quem combatesse regimes com a prosa, quem exaltasse amores proibídos e quem se multiplicasse.

E eis que chegou um tempo em que já nada era impossível. As palavras saíam em catadupa de todas as mãos, os poetas nasciam e os mesmos morriam passadas poucas horas, dando lugar à enxurrada que seria filtrada por uma nova descoberta chamada «mercado». Um tempo onde as memórias deixavam marcas, eternas porventura, mas não indeléveis. Onde quem por força do talento, o mesmo talento que de geração em geração se movia nadando cegamente, brincando, combatendo regimes, exaltando amores proibídos, quisesse vingar seria sugado para um buraco negro que cuspia letras e palavras aleatoriamente.

Mas já nada era impossível. Era possível fazer montras, era possível criar merchandising e vencer pelo marketing... Era possível deixar que outro papel, talvez mais forte, tomasse o lugar daquele que outrora dera História. Era possível deixarem os talentosos homens das palavras de fora. Era possível ignorarem-nos ou, quando muito, obrigarem-nos a suplicar por um lugar ao Sol, onde queriam estar só para serem vistos. Mas não havia lugares ao Sol. Apenas uns toldes para abrigar retalhistas ávidos de lucro que, com palavras vendáveis na mão, se orgulhavam de ter deixado obras-primas nos armazéns.

Hoje escondo a cara de vergonha ao compasso da música fúnebre que se faz ouvir em honra da nossa famigerada literatura.

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