Cultura paga do lado certo

A cultura ser paga é a premissa de que devemos partir. Isto porque a cultura é um bem essencial e uma profissão, pelo que quem a produz e a exerce tem o direito de ver o seu trabalho recompensado. Ninguém consegue comprar um quilo de arroz com uma salva de palmas.
Se o Estado, para a proporcionar ou aproximar do cidadão, escolhe assumir parte dos custos é outra questão que, embora legítima, pertence a outro domínio. 
Partindo deste princípio, chegamos a uma encruzilhada que conheço bem e da qual são vítimas todos aqueles que, no seu ou no superior interesse cultural, pretendam criar algo que seja difundido com sucesso.
Em tempos, burlado por uma editora que ainda por aí se passeia, acabei por aceitar o pagamento dos inalienáveis direitos de autor do meu primeiro livro com os meus próprios exemplares; mais tarde, escrevendo para um estúdio, descobri que esse álbum ficaria numa gaveta à espera de ser resgatado por um inexistente discográfico benemérito ou pela avolumada quantia que o artista não tinha; no teatro amador, vi o director da colectividade pagar centenas de euros em aluguer de guarda-roupa do seu próprio bolso; no teatro profissional, assisti a convites endereçados a associações de pessoas portadoras de deficiência por serem excelentes veículos de promoção mediática; no associativismo, vi sócios salvarem associações no limite, dirigentes comprarem votos com vinho do Porto e políticos varrerem esses problemas para debaixo do gigante tapete da procrastinação. Por último, e não menos chocante, conheci polícias que usam marcas forjadas em empresas inexistentes para dar formação a incautos duma área que não é a sua, com a colaboração duma corja de cúmplices.
É certo que, pelo caminho, conheci muita gente bem sucedida em lugares que, típica e erradamente, são associados à falta de resultados e isso transmite esperança. Nestes casos, tive muita sorte.
Neste meio, como na política, se o mérito não for capaz de ocupar o lugar que é seu por direito, seja por falta de apoio, por ignorância ou estupidez de quem tem poder executivo serão os aventureiros desmiolados a ocupar as ruínas abandonadas daquilo que era um palácio.
A cultura tem de ser acessível, mas paga, valorizada e apoiada pelo consumidor para que o processo criativo seja sustentado na sua mais pura forma e deixemos o caminho do facilitismo lucrativo de fazer mais do mesmo, reiterando fórmulas que nos normalizam e nos transformam num rebanho.
Para isso, é preciso investimento sério sem imperativos imediatistas e é vital deixar de mentir. O engano com que nos convencemos, batendo no peito por fervor altruísta, esconde o lado negro desta viagem onde só importa o destino e o percurso pode ser devassado.


Fernando Miguel Santos
13 de Janeiro de 2016

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